Chegando em casa no final da tarde após mais um dia sufocante de calor no verão novaiorquino, Fred Seaman recebe uma fita K 7 com conteúdos da secretária eletrônica do cantor e compositor John Lennon, antigo membro do conjunto de rock The Beatles.
O material foi enviado até seu apartamento por Yoko Ono, esposa do músico inglês que havia entrado em contato com o assessor por telefone minutos antes. Na ligação, a artista plástica mal podia controlar as palavras em inglês e japonês que emitia, em razão do seu estado de nervos.
Na gravação da secretária eletrônica, havia uma ameaça explícita à segurança do senhor Lennon, onde uma voz de indivíduo razoavelmente jovem dizia claramente: “John Lennon, você pagará o preço da blasfêmia com seu sangue. Seus dias estão contados e não adianta se esconder. Nós vamos pega-lo”. Por algum motivo, Yoko Ono levara a questão muito a sério. Adepta da numerologia e ciências esotéricas, ela dizia ter tido acesso a algum tipo de revelação de que a vida de seu marido corria perigo.
Superprotetora, a artista plástica decidiu não deixar que o esposo soubesse da ameaça visando poupá-lo para que o fato não interferisse na produção de um disco de retorno do ex-beatle ao show business, após anos de auto reclusão. Yoko então encaminhou o material para Fred Seaman a fim de pedir uma opinião deste sobre o que deveria fazer.
Após ouvir o conteúdo da fita, o telefone toca novamente na sala de Fred. Era Yoko:
– Fred, o que faremos?
– Acho que devemos ligar para a polícia primeiro, responde o assessor.
– Não quero publicidade. Isso não pode chegar aos ouvidos de John de jeito nenhum.
No dia seguinte, Seaman procura um outro assessor de gente famosa que serviria como passaporte até alguém de influência nas engrenagens do sistema: o prefeito de Nova York, Edward Koch. Não exatamente um fã de rock, Koch recebeu Seaman com reservas por saber da vocação para controvérsias que permeavam o histórico do músico.
Achou que poderia se tratar de mais uma campanha publicitária esquisita com motivos políticos ou simplesmente para chamar atenção em torno de um novo disco que Lennon estaria produzindo. Foi com muita conversa que Seaman fez o prefeito pelo menos ouvi-lo.
No final da explanação, Koch e Seaman pelo menos tinham chegado a uma questão em comum: séria péssimo para a vocação turística da cidade ter alguém tão famoso assassinado em seu território. A fama de uma Big Apple violenta na época causava danos à imagem da cidade, que já registrava queda no fluxo de turistas nacionais, assustados com o que publicavam diáriamente os tablóides sensacionalistas e ainda com as imagens chocantes dos telejornais.
– Pelo sim, pelo não, vou pedir a uns amigos para investigar, disse o prefeito.
Naquela mesma semana a fita já estaria na mesa de Louis Freeh, coordenador da equipe do FBI em Nova York. Quem diria que algum dia os federais, durante tanto tempo inimigos ferozes de John Lennon, poderiam ajuda-lo em alguma coisa?
Um clima detestável
Alheio aos fatos que já envolviam dezenas de pessoas nos bastidores, Lennon continuava compondo suas canções, tirando fotos e curtindo férias que pareciam eternas. Estava de passeio pelas Bermudas, em companhia do seu filho de cinco anos e do filho pré adolescente do seu primeiro casamento.
Enquanto isso Yoko havia escolhido permanecer em Nova York por simplesmente não ter condições psicológicas para ficar sem notícias a respeito do andamento das investigações. Ao marido ela havia dito que tinha de ficar na cidade para tratar de negócios referentes à produção leiteira que o casal mantinha no interior do estado.
Embora Lennon gostasse de posar como durão, era sua mulher quem na verdade tinha essa característica marcante na personalidade. Apesar de passar por momentos de extremo stress, controlados a base de tranqüilizantes, a artista plástica conseguia manter a calma ao telefone com o marido, que não percebia estar no centro de mais um redemoinho, desta vez envolvendo ameaças à sua vida.
O pior de tudo era que os contatos malignos não paravam. Enquanto o músico curtia o paraíso tropical, o produtor David Geffen, proprietário da Geffen Records, selo que deveria lançar o disco da volta do ex beatle, recebia uma papel com teor ameaçador: “ Morte ao herege’ , dizia um bilhete formado com recortes de jornais.
No apartamento do casal Lennon, a secretária eletrônica registrou mais três recados desde que a primeira gravação com ameaças foi feita. Em todos, promessas de que o músico seria assassinado em breve. Um deles chegava a citar trechos da Bíblia para justificar o ato que diziam estar por cometer.
Nesse meio tempo, todas as pistas reunidas pelo staff de Lennon eram entregues à equipe de Louis Freeh - à essa altura já convencido de que por trás das ameaças haviam um ou mais lunáticos potencialmente perigosos. Não se podia descartar a possibilidade de um crime de morte deste tipo num país em que personalidades ligadas a questões políticas como Martin Luther King, Malcolm X, Robert Kennedy e dois presidentes da república já haviam sido mortos por fanáticos.
Ainda havia um agravante que despertava especial atenção da CIA e do FBI à época: o medo de que um provável assassinato de Lennon fosse interpretado como um complô do governo norte americano, incomodado com um super popular militante pacifista estrangeiro de volta à ativa em seu território.
Caminhando sobre gelo fino
Poucos dias antes do final do verão, a porta se abriu naquele apartamento especial do Dakota e um assessor cubano do casal Lennon trouxe duas malas de couro pesadas. Enquanto voltava para pegar o resto da bagagem, o músico adentra pela sala, sob o olhar perplexo de sua consorte, que não esperava sua volta para casa antes do prazo deliberado.
– Mãe, estamos aqui ! Exclama um John Lennon bronzeado e magro, no momento em que seus dois filhos também entram. Yoko precisa de alguns minutos para concatenar as idéias antes de recepciona-lo com um abraço.
– Sabe aquela canção que eu te mostrei pelo telefone? Já está quase pronta. Vou tomar um banho e depois toco pra você no piano. Diz ele. Os anos de psicodelismo pareciam definitivamente longe. O maior formador de opinião dos anos sessenta agora era quase uma pessoa comum, um dos seus maiores desejos.
Naqueles dias em que John Lennon voltara ao ninho após uma temporada comendo peixe à beira mar, as coisas não estavam fáceis para Yoko, que ainda insistia em coordenar uma espécie de redoma isolante para deixar o marido alheio acerca da investigação que se seguia bem debaixo do seu nariz.
Já havia avisado a todos os colaboradores mais próximos para não tocar no assunto pelo menos até o final da gravação do disco, projeto importante demais para o casal. Ela fazia de tudo para evitar um novo revés do destino, do tipo dos que, por motivos vários, também torpedearam LPs de Lennon ao longo dos problemáticos anos setenta.
Num dia em que a temperatura na cidade preferida dos Lennon começava a cair, John Lennon está na companhia de May Pang, sua ex secretária. Com um cigarro fumegante entre os dedos, observa o teto do apartamento em Greenwich Village, onde costumeiramente a encontrava. Ela o fita, com olhar quase cerimonial, admirando ao mesmo tempo o homem e o mito. Demorou para que tomasse coragem e interrompesse o silêncio.
– John preciso te falar algo sério.
– O que é? Não me diga que está grávida.
Foi quando a verdade veio à tona para o músico que, instantaneamente, foi acometido de um acesso de raiva. Lennon se sentiu como criança mimada e carta fora do baralho, coisa que ele simplesmente não poderia aceitar. Um primo de May trabalhava no FBI e havia vazado o segredo para ela, que preferiu não manter a farsa. Tomado por aflição, medo e ressentimento, John Lennon veste suas roupas rápidamente e volta ao Dakota para pedir explicações à esposa.
- Eu deveria ser o primeiro a saber!
- Só fiz assim porque achei que seria melhor para todos, responde Yoko, em lágrimas.
O tranqüilo idílio dos Lennon estava definitivamente rompido por um clima doentio que agora chegara ao cabeça da família. Como não poderia deixar de ser, o fato serviu como fonte inspiradora para produzir música. Naqueles primeiros dias em que o inferno apareceu claramente para o casal, John Lennon regravou um blues que havia feito nos anos setenta: Scared de letra sombria e enigmática, onde dava pistas do seu sentimento. Com Yoko compôs Walking On Thin Ice, cujo título parecia dizer tudo que eles passavam no momento em que o FBI surpreendentemente surgia como um aliado de última hora.
Dali em diante o casal preferia se manter no Dakota. Só saiam para ir ao estúdio Hit Factory. Ainda que tivessem todo um aparato de segurança disponível, acreditavam ser melhor escolha permanecer na fortaleza, ainda mais quando o assassinato de um homem caucasiano muito parecido com John Lennon chegou a ser interpretado pelo FBI como um crime cometido pelos fanáticos por engano. Mais tarde soube-se que era um mendigo morto em briga de rua.
Diga ao mundo que estamos de volta
Eram muitas noites mal dormidas para John e Yoko. Desde os tempos em que se injetavam heroína juntos que não viam tantas madrugadas passarem em claro. Reforçaram a segurança particular, coisa que o ex beatle sempre foi terminantemente contra, mas que para a qual foi convencido por agentes do FBI que diáriamente iam ao Dakota.
Um investigador negro, Lewis Emerenthine, foi designado para acompanhar o casal e esclarecer as dúvidas de Lennon, em tempo integral. O inglês logo simpatizou com ele, especialmente depois que descobriu que Lewis arranhava um violão e cantava clássicos do bluegrass e canções folclóricas do velho Sul com certa propriedade.
Foi Lewis quem um dia chegou ao Dakota com a notícia de que haviam detido dois homens de meia idade no metrô do Brooklin. A investigação conduziu o FBI a uma organização religiosa derivada da Ku Klux Klan que pretendia se estabelecer no imaginário popular através de atos terroristas. A WSN ( sigla para White Saint Nation ) era básicamente formada por veteranos da guerra do Vietnã, mutilados na carne e no espírito. Descobriu-se também que eles estavam por trás das mortes de duas prostitutas no Harlem e de ameaças contra a vida do senador Ted Kennedy. Ao todo, dez foram presos sob acusações de homicídios e associação para o crime. A notícia chegou a ser divulgada nos telejornais, porém milagrosamente sem que o nome dos Lennons vazasse.
Foi um alívio enorme. Dias depois, o ex parceiro musical de Lennon, Paul McCartney, chegou a vista-lo juntamente com a família. À Paul ele revelou o drama pelo qual tinha passado recentemente. Ouviu do amigo o chamado para que voltasse a se estabelecer na Europa, de preferência a velha Britânia.
– Seria melhor para Sean. Sugere Paul.
Lennon, entretanto não concorda e responde que continuaria sua vida normalmente, já que o pior tinha passado e agora a vida se abria de novo com todas as suas esperanças e oportunidades.
– Vamos fazer rock na terra do rock. Soul na terra do soul. Hail !
Numa entrevista a uma emissora de rádio, sem comentar nenhum ponto da novela policial que tinha atravessado nos últimos meses, John fez propaganda do novo disco em grande estilo:
– Bob, diga ao mundo que estamos de volta !
Não demorou para que tudo retornasse aos mesmos padrões de antes. Agora com mais intensidade, já que John e Yoko estavam de novo na mídia, para desgostos de alguns e deleite de outros tantos. Apareciam na TV, planejavam uma turnê, faziam jams com figuras como Bruce Springsteen e David Bowie, assistiam ao Star Wars em sessões de cinema cuidadosamente planejadas no Dakota…enfim: viviam uma temporada de sonho familiar e ainda saboreavam a fantasia do pop star americano. Melhor impossível para uma pessoa que já tinha conhecido a fama extrema e o ostracismo voluntário em tão curto espaço de tempo.
Naquele momento para ele a família, os pães caseiros e a criação de gatos eram moldura do novo projeto destinado às paradas de sucesso. Uma das músicas do novo disco até já aparecia entre as dez mais, algo que ele já tinha esquecido como era.
Por vezes, quando ia dormir perguntava à Yoko:
– Acha que estamos indo bem? Ainda podemos parar e voltar a ser como éramos.
Em outras vezes demonstrava a confiança dos tempos de outrora, andando pelas ruas de mãos dadas com ela. Num desses dias respirou fundo como um adolescente o ar frio da cidade adotiva e anunciou para a mulher com aquele jeito irônico que ele havia encenado para um filme dos Beatles:
– Isto é só o começo, baby !
Ninguém notou, ou talvez Yoko tenha notado, que viviam momentos realmente especiais. Eis, porém, que estava acocorado na calçada um blue meaning corcunda, envolto em fedor e com o rosto coberto por bolhas purulentas. Da penumbra ele balbuciou um tenebroso chamado…
– Senhor Lennon…
Celso Rommel
Celso Rommel
Curiosa essa história. Não conhecia não. Acho que Lennon tinha se iludido demais com a liberdade que ele encontrou na América. Um cara como ele nunca deveria andar sem guarda costas. Mesmo a contra gosto. Porque o assédio sempre foi muito grande. Foi uma pena ele achar que no meio de tantos fãs que o admirava e o seguia de forma respeitosa pelas ruas de Nova York, não sairia um fã lunático que tiraria a sua vida. Se John tivesse escutado Paul e ido embora com a família dele para a Inglaterra, talvez ele ainda estivesse aqui hoje. Ou talvez não. Mas, com certeza, teria vivido mais e morrido de velhice e não assassinado.
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