quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Poder Branco


Mutações e caminhos de um álbum duplo dos Beatles

Quem são (ou quem foram) os Beatles? Quatro caras vestidos em impecáveis ternos negros, cantando rock balada com harmonias vocais inovadoras ou aquele banda de rhytm'n'blues revival do disco Let it Be? Os Beatles são a banda do clube dos corações solitários, perita em trilhas sonoras para viagens de ácido ou os teddy boys de Hamburgo? Consigo identificar bem Elvis Presley, um tipo de canastrão tenor e ator de dezenas de filmes parecidos. Jimi Hendrix também -um mestiço muito louco que fazia malabarismos físicos e sonoros com a guitarra. Mas os Beatles... não sei nem o que dizer. Numa análise simplória eu poderia qualificá-los como uma confraria de mutantes, figuras em permanente estado de metamorfose, algo como seres elementais do folclore britânico (leprechauns, elfos) adaptados para a música moderna (moderna?). Partindo dessa constatação é que eu agora ouço o disco duplo. A capa é branca - alva ternura a qual os indivíduos que alegam ter voltado da morte após coma profundo dizem ter vislumbrado no além.

Mas como compreendê-lo 36 anos depois? Você pensa em analógico ou em digital? Como penetrar em todas as estruturas presentes nas faixas quando vivemos num tempo onde a experimentação musical parece definitivamente relegada ao passado? É preciso primeiramente entender que:

a- Nos anos sessenta ainda não havia a designação "nerd". Quem curtia música, misticismo, cultura, ao invés de mero consumo, era simplesmente legal, cool, antenado, por dentro.

b- Ao fazer a colagem de Revolution 9, John Lennon estava reproduzindo sonoramente os sonhos lisérgicos de 6 em cada 10 adolescentes ocidentais da época. Naquele tempo era moda se fazer painéis com colagens misturando fotos, desenhos e outros lances recortados de revistas e jornais para enfeitar ambientes.

c- Em 68, ao ouvir Revolution 9, a associação com outras manifestações artísticas como o filme "O Bebê de Rosemary" e as séries de TV "O Túnel do Tempo" e "Perdidos no Espaço" seria inevitável.

Portanto, o disco duplo dos Beatles não é de todo uma obra hermética e insondável como pode parecer a alguns ouvintes novatos. Existem paralelos. Volta e meia alguém pinça alguma coisa dele para fazer som atual, como confessou Thom York do Radiohead ao dizer que, para compor a sua Paranoid Android, usou como base Hapiness is a Warm Gun, obra prima que reúne vários climas e cores numa mesma canção.

A genialidade da banda, na minha opinião, se inicia no lado 2, com Martha my Dear, feita em homenagem a uma cadela, gesto de humilde contemplação que se repetiria na singela Blackbird. E ainda aqui eu pergunto: "Seriam os animais superiores aos seres humanos? (vide Planeta dos Macacos e Piggies)?" Mas isso é assunto para outro artigo. Voltando ao Poder Branco: Como analisar a melodia de Julia? Defendo a hipótese de um toque jobiniano (sim, música brasileira!) no segundo verso.

Os efeitos sonoros que foram esparramados displicentemente por toda a obra aparecem de quando em vez... logo na abertura o trem de pouso do avião beatle nos avisa: Estamos de volta as União das Repúblicas Socialistas Soviéticas! E o que seria a gravadora Apple, senão uma saudável, embora efêmera, experiência comunista onde qualquer artista pirado, do tipo que surgiam como cogumelos depois da chuva naquela época, poderia registrar e divulgar seu trabalho através dos camaradas Che Lennon e Fidel McCartney ou, se preferir, Marx Lennon e Engels McCartney. Ah, as utopias, como viver sem elas? Qualquer dia a gente se encontra de novo num Woodstock qualquer.

Mais efeitos: em Dear Prudence um som de sintetizador parece traduzir a impressão de alguém sentindo o prazer proporcionado por uma manhã de sol num ashram em Rishikesh (..."see the sunny skies ..."). Com tantas referências, as vezes percebo como se eles estivessem tentando dizer: "Quem vocês pensam que somos? Após todos esses anos vocês ainda duvidam de quem realmente somos? Nós somos todos eles: Dylan, Hendrix, Stockhausen, Gershwin, Cole Porter, Ravi Shankar, Schubert, Rolling Stones, Brian Wilson, todos os malucos numa só entidade e ainda mais, mais e mais... (vide Rocky Racoon, Helter Skelter, While my Guitar, Good Night e Wild Honey Pie, entre outras)". Acho que foi pensando assim que Charles Mason pirou de vez, usando uma constatação sublime para cometer crimes sórdidos. Apesar dele, nós ouvintes dos Beatles somos, em nossa maioria, pacíficos.

E por que um disco duplo? Ninguém no rock fazia isso. Era comum somente em discos de ópera, cinema ou clássicos. Penso que foi uma catarse, uma aula completa, a publicação de uma enciclopédia que ainda não foi completamente compreendida. Uma das lições dessa verdadeira epopéia musical: "Se você quer voar alto, aprenda o vôo rasante. Blackbird, que esteve no céu com diamantes agora retorna cansado, pousa sobre minha árvore e canta uma melodia simples, de infinita beleza."

Ao final da audição, após notar que houve o plantio de sementes para toda a história da música subsequente (como por exemplo o reggae de Ob-La-Di-Ob-La-Da) desligo o meu pick up em atitude de servil adoração. Alfaiates de luzes, jardineiros da humanidade. George Martin, dentro da sua cabine de gravação, acompanhando todo o processo, deve ter ficado impressionado com tudo aquilo. Afinal eles os "conhecia". Eram só uns carinhas que queriam gravar aquele embalo country com solo de gaita e imitavam bem o som ianque da época. As mutações da vida. Elas sempre nos supreendem...

Celso Rommel 2004

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